Fotograma 1

Recuo no tempo.
Fecho os olhos e as imagens surgem pequenas, num campo escuro, imperceptíveis de distinção.
Eu... criança... corro... alegre. Apesar de não ver quase nada percebo alegria.
Fecho novamente os olhos.
A enorme figueira do lado esquerdo. Acho que nunca vi outra assim tão grande...
A casa do lado direito. A minha mãe à janela. E eu brinco. Na rua. Sempre na rua.
A liberdade!
Sentir o ar.
O vento.
Os pássaros.
Rir. Rir. Rir.
A fuligem dos pneus da fábrica perto, onde mergulhava e saía toda preta.
Eu e o meu irmão.
Agora já tenho os olhos abertos. Não preciso de os fechar.
As lembranças chegaram todas juntas.
"Estudaste hoje?"
Estava de férias. As "férias grandes".
"Sim!"
OK! Óptimo! Desta safei-me...
Brincar. Era tudo o que eu queria.
Os tachos, as panelas, as bonecas, vestir e despir...
As BDs. A revista Tintin que eu lia debaixo dos lençóis por não ter tempo de ler durante o dia.
Tinha que brincar.
Mas também tinha que ler.
E o sono que não vinha. Nunca foi meu amigo. O sono.
Passos. Apago a lanterna.
"Boa noite!"
Beijo
Durmo.
"Estudaste?" - todos os dias, nas "férias grandes".
A melhor aluna. Tinha que ser.
"Não..."
"Amanhã não sais de casa!" Os olhos ameaçadores. O tom de voz alterado.
Nem precisava tocar-me. Nunca me tocou. O medo era enorme.
Mas mentir não.
O pior que me podia fazer era pôr-me de castigo e o castigo era sempre o mesmo: "Amanhã não sais de casa!"
Bolas!
A minha mãe, por vezes fazia-se esquecida e lá ia eu brincar para a rua.
Também, tantos miúdos e miúdas com quem brincar e eu fechada em casa. Nas "férias grandes"...
Mãe é Mãe!
(apesar de haver quem não o saiba...)